Xeque
Ao
olharmos um trabalho feito em papel presente nessa individual, suspeitamos se
tratar de um estudo para erguer uma escultura no espaço da galeria. Na parte de
cima da imagem, isso é anunciado – “as ideias para o ofendículo”. Mais ou menos
no centro está representado aquele objeto que ganhou forma tridimensional e que
tem lugar de destaque aqui. Abaixo dele, a frase “namoradeira arruinada devidamente ofendiculizada”.
A
ideia de ruína é um dado que se faz presente na produção de Daniel Murgel há
algum tempo. Ao observarmos seus trabalhos, é possível detectar tanto alguns
títulos que apontam para isso (como “A casa arruinada nas pedras”, de
2008/2009), quanto imagens que potencializam esse lugar da transformação da
matéria em pó. A verticalidade e clareza do bronze proporcionadas pela
estatuária clássica são recodificadas e vertidas em obras que partem do contato
direto com o chão e a esse lugar parecem destinadas. O
lugar da memória e História vertido em narrativa grandiosa cede espaço para,
como também diz o título de um trabalho de 2012, a “Amnésia – construir para
destruir”.
Camas,
berços e bancos de praça, espaços projetados para o bem-estar e o conforto são
atravessados (às vezes literalmente) por cimento, tijolos e uma reflexão escultórica
que sugere bruta verticalidade. Não apenas os materiais da construção civil são
presentes, mas em alguns momentos essas superfícies para o corpo compartilham o
mesmo espaço de elementos tipicamente vistos como advindos da natureza, tais
como a água e a vegetação.
Daniel
Murgel sugere esses diálogos a partir de estruturas nada naturais que mediam
nossa experiência atual desses elementos vivos – na ausência de um oceano, eis
a caixa d’água de plástico; longe de uma floresta, as raízes de uma planta brotam
do fundo de um vaso de concreto. Parece não haver mais espaço para a comodidade
na experiência do espaço arquitetônico sugerido pela sua pesquisa, restando ao
homem apenas a apreensão do mundo a partir da claustrofobia – seja ela dada a
partir de um aquário com sua transparência opaca, seja através do oxigênio
gradeado de uma gaiola.
De
que modos, portanto, a presente exposição dialoga com o lastro de trabalhos do
artista? Falar da constância do cinza, do vermelho e do cheiro de canteiro de
obras me parece interessante, mas óbvio. O que me chama a atenção aqui é a
vontade de um diálogo com um uso habitual de um espaço, ou seja, se trata de
uma instalação que foi pensada a partir de uma experiência do corpo daqueles
que adentram a galeria Portas Vilaseca. Lembrando-se da frase presente no
trabalho anterior de Daniel, feito na I Bienal do Barro, é possível afirmar que
aqui também há uma “mudança de sentido”.
E se
o apertado cubículo presente em um centro comercial no Leblon fosse ainda mais
estrangulado? E se a palavra estrangeira, o shopping
(e o verbo comprar, tão inerente a uma galeria de arte) fosse de encontro ao
puxadinho, essa solução tão comum na arquitetura popular brasileira? Longe da
crítica ao lugar do comércio (caminho que certamente roçaria em uma contradição
amparada pelo cubo branco), se preferiu pensar de modo reflexivo a partir dos
ofendículos, esses elementos nada discretos e muito comuns na arquitetura no
Brasil afim de coibir invasões.
Esses
objetos cortantes e feitos de vidro, arame ou, como o par de nossa namoradeira,
de metal pontiagudo, demonstram interior e exterior, disciplinando o corpo do
passante e indicando os nossos limites perante um espaço visto como do outro.
Esse jogo entre o dentro e o fora foi estimulado através do deslocamento da
vitrine da galeria - elemento arquitetônico comumente visto como oposto do
ofendículo, ou seja, um meio de transparência e de visibilidade, aqui ele é o
responsável tanto pelo sufocamento do espaço, quanto pelo protagonismo dessa
namoradeira entre o conforto e a coroa de espinhos.
Tentando,
por fim, enxergar essa configuração formal por outra perspectiva, não estaria
toda galeria de arte pautada nesse jogo entre o convite para a entrada por
parte do passante (vitrine) e o intrínseco distanciamento social dialógico com
a ideia de mercado privilegiado que carrega (ofendículo)? Ao voltar para o
trabalho com o qual comecei esse texto, para além de qualquer esforço
metafórico por parte do observador, parece mais importante a experimentação de
materiais e de configurações formais para que nossos corpos experimentem o
ambiente construído. Através desse dado descubro de onde surge minha admiração pela
produção de Daniel: é a incapacidade de circunscrever de modo muito preciso os
códigos de seus trabalhos que me levam a prosseguir com minha vontade de
contemplação.
É no
cimento que escapole das reentrâncias de seus tijolos que me parece estar
contida a densidade do “coeficiente artístico”, conforme escreveu Marcel
Duchamp, da sua pesquisa – apenas resta continuar a jogar xadrez com Daniel e
observar novos xeques.
Raphael Fonseca - texto escrito para a exposição na Galeria Portas Vilaseca.