O Jardim de Epicuro - 2012


As ruínas do jardim

Cauê Alves


A mostra O Jardim de Epicuro, de Daniel Murgel, apresenta uma dicotomia fundamental: o prazer natural, a felicidade, versus a sofrida vida em uma grande metrópole. Como se sabe, em São Paulo a contradição é evidente. Há diversos bairros chamados de jardim: desde os áridos Jardim Ângela e Jardim São Luiz, que já foram considerados pela ONU uma das regiões urbanas mais violentas do mundo, até os arborizados e nobres Jardim Europa e Jardim América. Mas não são propriamente desses jardins que o artista trata, e sim da vida cotidiana em meio aos tropeços de um acelerado processo de urbanização. Esse estado absurdo levou o antropólogo e filósofo francês Claude Lévi-Strauss a dizer que "Aqui tudo parece que ainda é construção e já é ruína", frase que Caetano Veloso usou depois na canção Fora de Ordem.
            A referência ao famoso jardim de Epicuro, filósofo grego do século IV a. C. não é casual. Ao se dedicar a uma filosofia moral e prática, Epicuro se opôs ao modelo da Academia, ao Liceu e a toda a tradição platônica e aristotélica, num momento marcado pela decadência da cidade-Estado grega. A escola de Epicuro ficou conhecida com o nome de o Jardim, comunidade aberta em Atenas onde o filósofo lecionou e viveu até o dia de sua morte rodado de amigos e discípulos. Afastado do burburinho da polis, na calmaria e silêncio do campo, o jardim de Epicuro é o lugar onde será exaltado o prazer e a alegria. De modo bastante resumido, a filosofia de Epicuro compreende o bem a partir do natural afastamento da dor física, e pela proximidade com o prazer corporal, fonte da felicidade. Trata-se de um prazer associado ao equilíbrio, a serenidade, ao prazer do sábio que domina as paixões da alma.  Entre os prazeres mais elevados estão a saúde do corpo e o cultivo da amizade. Se o homem não temer a morte ou a ira dos deuses ele poderá facilmente alcançar a tranquilidade, a lucidez e, assim, o bem.
            Não deixa de ser irônico que o jardim de Daniel Murgel seja antes de tudo urbano, insalubre, e se aproxime de uma ruína. Nele está presente tanto a força da natureza sobre a cultura, a partir de um passado que desmoronou, quanto uma alegoria da própria passagem do tempo. Na galeria, um matinho cresce silencioso nas beiradas, entre as placas do piso, ao mesmo tempo em que uma fonte de água jorra constantemente, alusão a uma temporalidade fluida e sempre nascente, promessa de futuro. A memória de uma cidade feita de casebres simples, com um gosto médio e kitsch, dá lugar aos grandes edifícios pomposos de fachadas envidraças que representam o progresso. Uma vez que história e estória não se opõem, o que o artista faz é uma espécie de ficção arqueológica. Uma escavação/ construção na arquitetura que revela a história da cidade. Ela nos indica que a invenção pode nos mostrar mais do mundo do que a objetividade dos fatos.
            O padrão geométrico do piso que ocupa a calçada e invade a galeria, não é apenas continuidade entre o interior e o exterior, mas símbolo do estado de São Paulo e de certa utopia racionalista que permeava a arte construtiva no Brasil: sonho de um país moderno, civilizado e para todos. A matriz quadriculada com três módulos (preto, branco, e meio preto meio branco) desenhada por Mirthes do Santos Pinto, vencedora do concurso para o piso da cidade lançado pelo prefeito Faria Lima, em 1966, em São Paulo, se contrapõe ao padrões orgânicos das calçadas cariocas. Entretanto, o modo como o artista configura os módulos, o mapa do estado de São Paulo se torna uma onda, vira um barco e depois um pássaro que ensaia um voo livre.
Os artistas concretistas do grupo Ruptura, que lançaram as bases para o que seria o projeto construtivo na arte brasileira, condenaram a arte hedonista, “que busca a mera excitação do prazer ou desprazer”, em nome de uma arte que se situe acima da opinião e que seja dedutível de conceitos. A filosofia de Epicuro, por associar o bem ao prazer também foi rotulada (erroneamente) de hedonista devido aos elogios ao corpo e os prazeres sensíveis. Mas o prazer no jardim de Epicuro não está nos excessos e sim na harmonia do corpo.
E tudo o que sabemos sobre Epicuro nos chegou por fragmentos e cartas esparsas que a tradição no relegou, são ruínas de um passado glorioso que não mais voltará. Guardada as devidas proporções, do projeto construtivo também não restaram senão ruínas. Por uma impossibilidade de realização completa de sua utopia, sobraram apenas vestígios degradados de um sonho que não se assentou em bases sólidas. O trabalho de Daniel Murgel chama atenção a esse estado ao inventar um jardim de concreto, distante do jardim das delícias, do sonho dos prazeres do Éden, um lugar que talvez nos revele a dificuldade de realizarmos nossas aspirações de felicidade, seja a salvação coletiva ou a pessoal tal como Epicuro almejou.
O trabalho do artista permite que novos sentidos surjam entre o passado inventado e o que está por vir. Entretanto, a sua ruína é menos obra da natureza do que da ação e imaginação do homem, fruto do nosso atravancado e contraditório processo de modernização. Sem forjar utopias ou imagens felizes de um futuro improvável, e tornando presente um passado factível, o Jardim de Daniel Murgel deixa para cada um de nos a possibilidade de reencontrarmos prazer nas agruras da vida urbana.



sem título (transição mapa sp - pássaros - barcos)
intervenção permanente na calçada da galerira
500 x 240 cm








olhar pro chão
instalação: terra, tijolos, ladrilho e cimento
6 x 220 x 40 cm






detlahe para  a fonte


carrinho (1m²)
escultura: terra, madeira, ladrilhos, rodizios e cizal
100 x 90 x 40 cm




detalhe para o mato crescendo no carrinho



a presença do jardim de inferno no jardim de epicuro
vaso de cerâmica, terra compactada, ladrilho e sementes variadas
40 cm (diâmetro) x 60 cm  (altura)


(rompido)


 detalhe do mato crescendo no vasinho


pintura de parede: a parede tetrapharmacon
tinta pva, cimento, azulejo e desenho
250 x 400 cm